Os romances de ficção científica são provavelmente a segunda maior causa de urticária em intelectuais e acadêmicos, só perdendo, por muito pouco, para os livros de auto-ajuda.
À simples menção do termo ou da sigla “FC” seguem-se, invariavelmente, discretos acenos de cabeça, resmungos e uma sensação de desconforto. Dores de barriga, crises de enxaqueca e “calores”, seguidos das necessárias seções de descontaminação por exposição aos programas eleitorais gratuitos, são recomendadas para todos aqueles que se sintam ofendidos com a perspectiva de… sonhar livremente.
Olhar só para trás é reducionista e perigoso. De onde será que vem a idéia de que um romance só é confiável, bom e recomendável se for situado no presente ou no passado? Por que o passado é mais confiável? Por que o presente é mais criticável? Por que o futuro é inaceitável?
Medo. O ser humano tem um receio atávico do que não conhece, do que não domina e do que não consegue prever. Se um evento está, fisicamente, “virando a esquina”, isto já constitui um problema. E se, então, está longe o suficiente para ser classificado como algo que está relacionado ao “amanhã”, então é melhor chamar o médico da família. E que ele traga os nossos sais!
Crescemos ouvindo o ditado: o futuro a Deus pertence. Concordo. Mas quem tenta descrever o que Deus planejou para a humanidade, são os autores de ficção científica. Estes artistas da possibilidade mostraram que muitas vezes seus exercícios intelectuais podem mudar de categoria: se transformam em probabilidades. Cinturões de satélites para comunicação, veículos espaciais reutilizáveis, cirurgias oculares à laser, estações orbitais, pousos em outros planetas, clonagem, vôos supersônicos, computadores pessoais, dispositivos portáteis de comunicação interpessoal… perdão, eu quis me referir aos nossos pequenos e eficientes telefones celulares.
Não importa se o nome dado a um objeto há 60 anos atrás por um escritor, não é o mesmo que o departamento de marketing de uma indústria atual resolveu adotar como o melhor. Existiu a necessidade de um determinado equipamento (lentes de contato, ar condicionado, agenda eletrônica ou descascador de batatas), esta necessidade foi detectada pela indústria e ela foi atendida. O interessante é que este tipo de necessidade foi previsto com antecedência e o respectivo equipamento foi descrito, muitas vezes com anos de antecedência, por autores de FC.
Não quero aqui fazer uma apologia aos poderes sobrenaturais de presciência deste gênero de escritor, só quero deixar claro que existe mérito, inclusive mérito social, neste tipo de obra. Pensar uma sociedade diferente, criar equipamentos para resolver problemas, imaginar para as pessoas o desenvolvimento de novas habilidades, ou novas dificuldades, tentar criar realidades paralelas, melhores, piores, intercaladas, intermitentes ou, meramente diferentes, é o tipo de exercício a que este tipo de autor se entrega. De corpo e alma. Existem grandes autores neste gênero e existem obras que já deveriam fazer parte daquelas relações de livros que todos nós fazemos e cujo título é: tenho que ler. A propósito, se você não tem uma lista assim, já está na hora de fazer.
Definições
Mas o que pode ser considerado ficção científica? Muitos acadêmicos e intelectuais vêm tentando definir este gênero literário, mas só produziram complicações que tendem, quase como uma regra, a ser pejorativas. Exemplo: “FC é a vulgarização e antecipação de grandes descobertas científicas ou então conjecturas sobre o relacionamento entre o homem e a tecnociência”.
Até agora, quem melhor conseguiu definir FC, são seus próprios autores. Com definições que variam do cômico ao ofensivo, passando pelo razoável e o consciente, encontramos coisas assim: uma charmosa união entre fatos científicos e visão profética (anônimo); gênero literário que induz à voluntária suspensão da realidade em seus leitores utilizando uma atmosfera de credibilidade científica para suas especulações (anônimo); história sobre seres humanos, com problemas humanos e soluções humanas em torno de especulações científicas (Theodore Sturgeon); o ramo da literatura que aborda o impacto dos avanços científicos na vida das pessoas (Isaac Asimov); FC administra possibilidades improváveis fantasiando impossibilidades plausíveis (Miriam deFord); FC é difícil de definir pois é um gênero literário que aborda a evolução e que evolui enquanto se tenta defini-la (Tom Shippey); e a mais simplista de todas, a minha: uma história de ficção científica é aquela que faz o leitor viajar, no tempo e no espaço, sem medo, sem perigo mas o tempo inteiro com um friozinho na barriga.
Mas se a FC é tão rica, tão gostosa, tão criativa e variada, por que é vista como a prima pobre, inculta, burra, infantil e rampeira da literatura de proposta? Os únicos culpados são os próprios autores. Para demonstrar uma sociedade diferente, uma tecnologia avançada, um tempo futuro, não é necessário ter um complexo equipamento na parede do banheiro do personagem principal que receba o sugestivo nome de “pente mecânico”. Ao longo da história da humanidade muitos artefatos tiveram suas formas determinadas pela sua função original e, dificilmente podem ser melhoradas. Desde os tempos das cavernas os homens usam seus dedos para desfazer os nós de seus cabelos e um pente é uma evolução perfeita. Não se mexe em time que está ganhando. Ou existe uma forma melhor de prender papéis do que um clipe? Quando autores assim perdem a noção do ridículo, fazem um desserviço ao gênero literário que produzem.
A ficção científica de qualidade está muito além da cor verde (ou cinza, como querem alguns) dos seres alienígenas, dos cativantes olhos azuis do ET de Steven Spielberg ou de canudinhos para tomar refrigerantes que esguicham a bebida na boca de uma mulher com pele de onça, três seios enormes, uma cauda preênsil e saltos altos. Escrever algo com um pé na realidade e outro na ciência é o verdadeiro desafio, é a diferença entre boa e a má ficção. É o pé na realidade que confere credibilidade ao texto. É a verossimilhança que arrebanha leitores e adeptos. Não existem super-velocidades, as leis da física e da química continuam vigentes, até prova em contrário a gravidade existe e não é a “cor” do Sol que vai permitir que qualquer um de nos vista um pijama azul, uma capa e botas vermelhas e saia por aí voando e combatendo o crime.
Mas o leitor desavisado não pode se deixar abater com expressões como “conselho de planetas” ou “a base da guarda espacial”. Às vezes expressões assim são necessárias para dar um contexto social e até mesmo político para a obra. “The Moon is a Harsh Mistress” de Robert Heinlein (não encontrei tradução em português) não pode nem deve ser lido simplesmente como a história de uma cidade na Lua. Existe aqui uma profunda análise dos problemas psicológicos, biológicos, políticos, sociais e tecnológicos que envolveriam uma empreitada assim. Este romance especificamente, é uma impressionante luta pela liberdade de decisão e expressão, uma revolta grupal contra a opressão, a dominação cultural e o poderio militar de outro grupo social. Dito assim fica parecendo muito mais sério não é? O que ocorre é que, como em qualquer outro gênero literário existem autores excelentes e aqueles que deveriam voltar aos seus empregos anteriores. E mesmo quando se analisa a obra completa de um autor, encontramos obras melhores e piores.
Se nos ativermos por exemplo à obra de três autores consagrados que andaram flertando com a ficção científica, o realismo fantástico e o horror, sendo eles Jorge Luiz Borges (O Aleph), José Saramago (Ensaio sobre a Cegueira) ou Henry James (A Volta do Parafuso), percebe-se que eles, como qualquer outro autor, não foram brilhantes o tempo inteiro. E o mesmo acontece com todos os autores de qualquer outro gênero. A diferença é que os escritores de FC são sempre mais visados pois se expõe a riscos maiores.
Fantasia, horror e FC
Um erro comum é confundir ficção científica com dois outros gêneros próximos, o horror e a fantasia. O horror, como diz Freud em um de seus ensaios,é aquela “estranheza inquietante”. São conhecimentos biológicos ou antropológicos em torno dos padrões de “normalidade humana” e o que se afasta desta normalidade.
Apesar de existirem muitos autores excepcionais e romances consagrados como por exemplo “Frankenstein” (Mary Shelley), “Dracula” (Bram Stoker), “O Exorcista” (William Peter Blatty), “O Bebê de Rosemary” (Ira Levin), “O Iluminado” (Stephen King), provavelmente os dois autores de romances de horror que mantiveram uma consistência em termos de qualidade ao longo de toda sua obra, foram Edgar Allan Poe e H.P. Lovecraft.
O gênero fantasia, provavelmente o ramo principal do qual a ficção científica e o horror derivaram, tornou-se mundialmente popular depois da publicação da obra suprema de J. R. R. Tolkien “O Senhor dos Anéis” no final dos anos 60. Usualmente todos os romances que se referiam ou contenham animais falantes, mundos mágicos, “capa e espada”, feiticeiras, magos, unicórnios e outros seres mitológicos, estaremos transitando pelo mundo da fantasia que, também, é o mais amplo dos três gêneros pela sua variedade de temas. São mundos onde normalmente a ordem e as leis que mantêm esta ordem, não se aplicam ou são diferentes das que regem nosso próprio universo.
Mas independente de qualificações, e até como uma forma de afirmar sua rebeldia, inúmeros autores transitam de um gênero para outro, sem perder qualidade em sua obra. Cita-se como exemplo “O Homem Demolido”, de Alfred Bester, que é um policial ambientado no futuro, ou ainda “O Talismã” de Stephen King que é uma gigantesca história de fantasia.
Mas, como sempre, especialmente em um campo que envolve muita criatividade como a literatura, existem reações. E, sem se importar com urticárias, calores ou enxaquecas, a Universidade de Liverpool na Inglaterra, desde 1994, vem oferecendo um curso de Mestrado em Estudos de Ficção Científica, que abrange assuntos tão variados quanto utopias, FC e guerra fria, FC e sexo, bem como disciplinas dedicadas ao estudo de autores específicos, como Philip Dick, Isaac Asimov, Arthur Clarke e outros.
Já não era sem tempo. É necessário parar de encarar a FC como um gênero menor, descartável, especialmente se forem consideradas sua influência criativa em outras áreas como a televisão, o cinema e a própria ciência. Existe qualidade, profundidade e seriedade na FC. É preciso prender os cães de guarda lá na casinha no fundo do quintal, colocar a prataria e a melhor porcelana na mesa da sala se jantar e deixar a Ficção Científica (com letras maiúsculas) entrar na nossa casa e na nossa vida. Existe, sim, vida inteligente na FC. Basta saber onde procurar.