No final da década de 60 constantemente perguntavam a Arthur Clarke e Issac Asimov qual dos dois autores era o melhor. Uma competição infantil que poderia se transformar em uma batalha de egos, por envolver pessoas certas, transformou-se em uma saída elegante. Nasceu assim o “Tratado Clarke-Asimov de Park Avenue”.
Os dois estavam juntos em Nova Iorque, dividindo uma corrida de táxi que transitava naquele momento pela Park Avenue quando surgiu novamente o assunto. Fizeram então um acordo verbal pelo qual Asimov deveria sempre insistir que Clarke era o melhor “escritor de ficção científica” e que ele estava em segundo lugar. Por sua vez Clarke deveria honrar sua parte no tratado insistindo que Asimov era o melhor “escritor científico”, e que nesta categoria ele ocuparia a segunda posição.
Debaixo de uma multidão de sorrisos o acordo foi sempre respeitado. Em 1972, provavelmente a primeira vez que o tratado foi divulgado por escrito, Clarke publicou o livro “O Terceiro Planeta”. Na dedicatória: “De acordo com as cláusulas do Tratado Clarke-Asimov o segundo melhor escritor científico dedica este livro ao segundo melhor escritor de ficção científica”.
Se soa um pouco pedante, pode-se dizer em sua defesa que, na verdade, eles estão certos. E que, também, no acordo não fica claro o âmbito da classificação. Não se sabe se eles seriam os dois melhores do mundo, desta parte da galáxia ou simplesmente os dois melhores, em cada área, entre os presentes no momento da criação do Tratado: os dois e o motorista do táxi.
Sempre se disseram grandes amigos. Mas, não sei se por ciúme ou necessidade de colocar um pouco de ordem em sua própria fonte criativa, Clarke criou três leis. Sem vínculo direto com as três leis da robótica descritas por Asimov, as Três Leis de Clarke tratam da relação do homem com a tecnologia: 1) Quando um renomado e idoso cientista afirma que alguma coisa é possível, possivelmente ele está certo. Quando afirma que algo é impossível, ele provavelmente está errado; 2) A única maneira de se descobrir os limites do possível é se aventurar um pouquinho no impossível; 3) Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.
E apesar de afirmar que três leis eram suficientes para ele, pois haviam sido suficientes para “os dois Isaacs” (Newton e Asimov), no Apêndice 2 de “The Odissey File” ele, com seu bom humor característico, descreve a sua lei de número 69: “Ler manuais de computador sem o hardware é tão frustrante quando ler manuais sobre sexo sem o software”.
Os temas extremamente criativos, as observações bem humoradas e inspiradoras e os enredos inteligentes recheiam seus mais de 70 livros, o que, sem dúvida, gerou os 50 milhões de cópias que vendeu no mundo inteiro. Clarke foi laureado com os maiores prêmios de Ficção Científica: Hugo (atribuído pelos leitores – duas vezes), Nebula (conferido pelos escritores do gênero), Grand Master (Science Fiction Writers of América), Kalinga (Unesco), o prêmio AAAS – Westinghouse para textos científicos, o Bradford Washbur e um dos prêmios mais “queridos” pelos escritores de FC, o “John W. Campbell”.
Arthur Charles Clarke nasceu na Inglaterra em 1917 e vive na cidade de Colombo, no Sri Lanka, desde 1956. Foi convidado especial da rede CBS para narrar e, quando possível explicar, as missões da Nasa à Lua (Apolos 11, 12 e 15). Recebeu o título de “Sir” da Rainha da Inglaterra em 2000 e, ainda hoje, faz parte de inúmeras organizações científicas ligadas à astronomia, astrofísica e astronáutica. É bom lembrar que foi ele quem desenvolveu o conceito de comunicações através de rede de satélites geo-estacionários. Isto quer dizer que, se hoje em dia podemos usar nosso telefone celular para dar uma desculpa para o nosso chefe que estamos atrasados para a reunião porque ficamos presos em um engarrafamento, é graças ao Sir Arthur. Não que isto signifique que possamos começar a abusar da cerveja todas as noites. Apesar dos celulares, até a pessoa mais criativa vai acabar ficando sem desculpas. Mas isto é uma outra conversa.
Seus best-sellers incluem: O fim da infância (1953), 2001 Odisséia Espacial (1968), Encontro com Rama (1973), As Fontes do Paraíso (1978), As Canções da Terra Distante (1986) e O Martelo de Deus (1993). Dividiu com Stanley Kubrick uma indicação para o Oscar pela adaptação de “2001…” para o cinema. Atendendo aos pedidos de milhões de fãs, escreveu as continuações “2010: Segunda Odisséia” (que foi destruído pela versão cinematográfica), “2061: Uma Odisséia no Espaço III” e “3001: A Odisséia Final”. Se o livro original é absolutamente perfeito, das continuações posso dizer: tem quem goste. Não é o meu caso. Mas, pelo menos, foram obras inteiramente concebidas e desenvolvidas por ele.
O ano de 1988 cria um marco na vida literária de Clarke: é lançado “O Berço dos Super-humanos” (Cradle), em parceria com Gentry Lee. Apesar de ser cientista da Nasa, escritor de Ficção Científica e desenhista de jogos para computador, o estilo de Lee é completamente diferente. E isto se faz sentir em todas as obras da dupla. Clarke, se é que se pode usar o termo, “confidenciou” para seus leitores em um chat na internet que o processo de produção literária com Lee é assim: os dois discutem uma idéia, Lee escreve o livro inteiro e no final Clarke faz sugestões. É obvio que a “prosa clarkeana” acabou sendo diluída. E muito. Parece aquele restinho de perfume que fica pairando na ar quando aquela mulher maravilhosa já dobrou a esquina.
O mesmo acontece com “Encontro com Rama”. O livro original, publicado em 1973, ganhou praticamente todos os prêmios de FC existentes. Fascinado pelos conceitos abordados na obra, Lee vendeu a idéia de escrevem em parceria uma continuação… que se transformou em uma série de quase 1700 páginas: “O Enigma de Rama”, “O Jardim de Rama” e “A Revelação de Rama”. Talvez seja saudosismo da minha parte, mas prefiro o Clarke ao estilo Asimov: cerebral, científico, preciso, com personagens esquemáticos e idéias poderosas.
As obras da parceria com Lee são ralas. Reaproveitamentos de conceitos e idéias antigas. São focadas em personagens com perfis variados, até mesmo viáveis, mas deslocados dentro daquele universo. Intrusos. Se uma ostra cria uma pérola em torno de um grão de areia, ou seja, um intruso no seu mundo, o mesmo não acontece aqui. Fica evidente que as idéias e os personagens não saíram da mesma mente o que, em um livro, gera complicações. Esta (na falta de um termo melhor, vou usar a palavra) “humanização” ou alteração de foco, é sentida por todos os que acompanham a obra do escritor inglês. Fica aquela sensação de “tempos idos”, de saudade. Gentry Lee é um “bom” autor, não me entenda mal. Mas, para assinar um livro logo abaixo do nome de Arthur Charles Clarke, ele teria que ser um “grande” autor. Sinto falta de ler seus romances “solo”, aqueles no melhor estilo de Encontro com Rama.
Uma boa notícia, no entanto, é que finalmente decidiram roteirizar e filmar o livro. Enquanto suas obras mais populares estão com opções para grandes estúdios de cinema (a Universal está com “O Fim da Infância” na gaveta há mais de 30 anos e Spielberg comprou os direitos para filmagem de “O Martelo de Deus”) uma produtora independente, a Revelations Entertainment uniu-se à Intel (fabricante de chips para computadores) e resolveu viabilizar o filme. Especula-se que o lançamento deverá ocorrer em 2003.
Há dois anos e meio atrás, quando surgiu a idéia, o custo em computação gráfica seria de 300 milhões de dólares. Inviável. Hoje, com as novas tecnologias desenvolvidas pela própria Intel, esta cifra caiu para “modestos” 100 milhões. Apesar de ainda ser uma fábula, está dentro de padrões aceitáveis pelos estúdios americanos.
Bom para nós. Sobrou ainda dinheiro para pagar o produtor e ator Morgan Freeman, o diretor David Fincher (“Alien 3”, “Seven” e “Clube da Luta”), o próprio Clarke para consultoria de roteiro e, talvez a jogada de gênio, a contratação de Jean Giraud que é mais conhecido como Moebius, o premiadíssimo cartunista francês para fazer a concepção artística do filme. Moebius é famoso pelos intrincados e minuciosos detalhes de seus cenários e livros. E quando o assunto é “Rama”, ninguém melhor do que ele.
E o que é “Rama”? O livro começa narrando a queda de dois meteoros na Terra, em 1908 e 1947. Atingindo regiões desabitadas, não causaram grandes conseqüências, mas levantam para o leitor a teoria de que, literalmente, temos telhado de vidro. A prova final vem então no ano 2077. Mil toneladas de rocha e metal, movendo-se a 50 quilômetros por segundo, pulverizam Verona, Pádua e Veneza. Seiscentas mil pessoas morrem. E a humanidade dá um basta: “Na próxima vez saberemos com antecedência”. Cria-se então um sistema de radares para captar qualquer objeto móvel, até o tamanho de um Fusca, que possa aproximar-se da Terra. E, assim que a humanidade abriu os olhos para o espaço, percebeu que Rama se aproximava.
A princípio classificado somente como mais um dos grandes asteróides de passagem pelo Sistema Solar, grande o suficiente para receber um nome, acabou chamando a atenção dos astrônomos. Seu brilho era regular demais. O brilho de um asteróide normalmente é bastante variável pelas imperfeições de sua superfície e Rama emitia sempre a mesma luminosidade. Lançaram uma sonda. E a partir deste dia a humanidade obteve a resposta definitiva para a questão: Estamos sós no universo? A resposta foi um retumbante NÃO, na forma de um cilindro de 50 quilômetros de comprimento (quase a distância entre Curitiba e Lapa) por 17 de largura (a distância do bairro do Portão ao Bacacheri). Suas dimensões e formato deixavam claro que não era um objeto natural e que quem o havia planejado e construído era uma inteligência muito mais desenvolvida do que a nossa.
Uma pequena nave terrestre estava por perto e foi enviada para analisar Rama. Comandada pelo Capitão Norton (Morgan Freeman, no filme) eles pousam em uma das calotas abobadadas do cilindro. Escolhem uma entre as três entradas possíveis, passam então por três eclusas de ar, deparam-se com três escadarias ciclópicas, com três vales, com três… de tudo.
O que se segue é uma aula de Ficção Científica, de como se escrever um livro de entretenimento e de como é possível escrever FC baseada em ciência, ou seja, verossímil. As idéias de Clarke parecem absurdas até o ponto em que um dos membros da tripulação sob o comando de Norton entende os fatos e formula uma explicação fundamentada. O livro, como conjunto de idéias originais, narração, situações inusitadas e desfecho é um dos melhores que o gênero já produziu. Mas esteja avisado: quando começar a ler, desmarque alguns de seus compromissos, pois você vai chegar atrasado. Agradeça a Clarke a existência dos celulares e ligue avisando.
Os desdobramentos psicológicos, religiosos e políticos de um encontro como este, afetam toda a população terrestre e, são nestes momentos de crise de valores que nos desnudamos e nos revelamos de forma completa. Qual nosso papel neste sistema vivo e dinâmico que é o universo? Nós temos importância? O que, como raça e potência, significaríamos para uma raça com o potencial de criar uma coisa como Rama? Pouco. Muito pouco.
“Encontro com Rama” trata da insignificância do ser humano. Primeiro maltratado e humilhado pela natureza, depois olimpicamente ignorado por uma raça superior. Faz com que nos sintamos como o menininho no primeiro dia de aula na escola nova: perdido. Não temos quem nos guie. Precisamos andar com nossas pernas, caindo, levantando, às vezes brigando e, como sempre, tornando a cair. É então que, o ato de levantar novamente nos diferencia dos animais. É este o momento em que aprendemos. Em que nos motivamos com nossas próprias conquistas e temos certeza de nossa coragem. Nada vem de fora. As conquistas são sempre pessoais, não no espaço exterior, mas no universo interior.
Onde Encontrar o livro:
Outros livros do autor:
Adorei ter encontrado este sensacional trabalho: Parágrafo.
Com referência a Asimov, minha admiração não tem limites. Adoro os Viúvos Negros. E não conhecia Clarke! Só agora por sua matéria. Estou pasma, pois leio muito, exageradamente até, desde a infância, que já vai muuuuuito distante. Sou professora de Literatura e de Língua Portuguesa por formação. Poeta e prosadora por vocação.
Tenho obras publicadas , que não são lidas obviamente – você parece entender bastante deste fato, pelo que escreve… Quem vai ler esta senhora desconhecida, não jornalista, nem casada com jornalista? Sem nenhum acesso especial à mídia?
Fiquei feliz em conhecer seu site.
Bom trabalho e muito sucesso sempre!