Resenha de “O Homem Demolido” – Alfred Bester
No início dos anos 70, lá pelos meus 9 ou 10 anos, nem se sonhava com acesso à Internet. Existiam somente três canais na tv: 12 (Globo), 6 (Tupi) e o 4 (não me lembro). Sem os 200 canais hoje disponíveis nas TVs a cabo, meus irmãos e eu contávamos somente uns com os outros naquelas noites de verão, durante as férias.
Era quando nos amontoávamos em torno de um rádio galena (um cilindro de madeira e uma bobina de fio de cobre conectada à esquadria de ferro da janela para funcionar como antena) para tentar captar algum sinal. Mesmo depois que a moda passou e meus irmãos mais velhos partiram para outras empreitadas, passei muitos dias e noites tentando captar algum som. Onde eram originados, quem eram aquelas pessoas, onde estavam, o que faziam? Acho que ali, empoleirado na janela do quarto, tentando um contato pelo galena, ouvindo o mundo e admirando as noites estreladas, é que plantei a semente da minha curiosidade pelo mundo.
Muitas de minhas férias escolares foram passadas no quintal de casa, brincando sozinho (síndrome de filho caçula) e dando uma parada no meio da tarde para tomar um copo de Nescau e assistir Tunel do Tempo, Terra de Gigantes ou Perdidos no Espaço. Independente dos dias, lembro bem, eu reservava as noites para a leitura.
Com a família atenta aos seus afazeres, acendia uma pequena lâmpada na cabeceira de minha cama e mergulhava nas histórias das revistas Cosmos Aventuras e Ultra Ciência, que na verdade eram compostas com fotos de filmes trash de ficção científica dos anos 50. Tudo bem, não gosto de reconhecer mas… eram fotonovelas… mas “coisa de menino”, pois eram recheadas de naves espaciais, telepatas, alienígenas, batalhas, duelos e monstros.
Alguns dos filmes de onde foram tiradas as imagens para aquelas revistas ainda podem ser vistos nas tvs a cabo, nas maratonas temáticas de filmes antigos, mas não me pergunte seus títulos. Um dos meus irmãos ainda tem algumas “Cosmos…” e “Ultra…”. Contou que lembra até de uma história em que um cientista é picado por uma “tarântula radioativa” e sofre mutações horríveis. Eu lembro de uma história em que formigas, claro, radioativas, crescem e atacam as cidades (isto vai dar pano para manga nas festas de final de ano). E foi nesta época e neste clima que um livro especial foi parar na minha mesa de cabeceira.
Publicado em 1953, “O Homem Demolido” (ganhador do Prêmio Hugo) conta a história de Ben Reich, empresário, milionário, empreendedor, inteligente, criativo, corruptor e assassino. Suas atitudes, oriundas de uma profunda revolta contra a sociedade, são a causa final do reconhecimento do seu valor pessoal. Nesta obra, o mundo é policiado por telepatas. Um crime não é investigado pois é evitado e “percebido” antes de ser cometido, no momento em que nasce a intenção. Independente do que isto represente em termos de um estado totalitarista, é desta premissa que Alfred Bester (1913-1987) parte para escrever um dos mais famosos livros de ficção científica do século XX.
O título conta o final do livro: Ben Reich sofrerá a “demolição”, uma pena capital, mas sem morte física. Um procedimento clínico anula o que a pessoa era antes do crime, sendo que sua personalidade é reconstruída. A trama não deseja revelar quem é o assassino. Todos sabemos quem ele é, até os policiais telepatas. A luta está na coleta de evidências que o incriminem. Alfred Bester não perde tempo criando equipamentos futuristas. Ele centra o romance em torno das investigações e dos contatos entre os policiais. Jogando com o espaço das páginas, reproduz de forma brilhante os padrões mentais dos telepatas em desenhos formados com letras e palavras. Este tipo de recurso lhe causou muitos problemas em outro de seus romances, “TIGER! TIGER!” onde até frases coloridas foram inseridas no original e depois simplesmente removidas pelos editores, como também aconteceu no Brasil.
Bester não produziu quantidade, mas qualidade. Tem só 5 romances e algumas dezenas de contos publicados em antologias, mas sua experiência é rica em outras áreas: trabalhou como roteirista para a DC Comics produzindo histórias para o Batman, Super Homem, Capitão Marvel e Lanterna Verde. Escreveu para rádio, televisão e foi editor de revistas.
No Brasil, claro, a não ser em sebos ou edições importadas, é difícil encontrar as obras de Bester. Recaímos sempre no preconceito das editoras e do público contra as obras de ficção científica. O que é uma pena, pois graças à sua formação em (eu juro!) ciências, música, artes e direito, seus textos são sempre muito diversificados, ricos em conteúdo e referências clássicas. Acho que é exagero, como li, dizer que Alfred Bester é um homem adiante de seu tempo e um escritor adiante de sua realidade. Ele tem alguns contos muito bons, mas somente dois de seus romances são excepcionais: “O Homem…” e “Tiger…”.
Valorizando sempre a humanidade como um reflexo imperfeito de algo perfeito, Bester nos define como uma grande irmandade, onde qualidades e defeitos são partilhados por todos. Um sopro de esperança, de igualdade, mesmo em um livro onde as personalidades podem ser demolidas, pois a revolta, normalmente um comportamento social desviante, pode ser reconhecida como uma força de mudança.
Se em um livro como “O Homem Demolido” a mais assustadora pena para uma pessoa normal é a demolição, para um telepata é o ostracismo: não poder mais “conversar” com seus pares normalmente levava a pessoa à loucura. Não reconhecer valor literário em um romance assim é um caminho sem volta para a demolição e o ostracismo.