A importância “Do Inferno” no futuro dos quadrinhos.
É atribuída a Jack, o Estripador, a frase: “Um dia os homens olharão para a história e dirão que eu gerei o século XX”. Delírio, claro. Jack não atingiu a posição de progenitor do futuro. Não somos seus descendentes diretos. Ele é lembrado, mas só como uma ainda inexplicada aberração. Seu nome é associado ao medo, à escuridão e à morte. Foi a primeira estrela dos tablóides ingleses e permanece como o mais famoso e enigmático serial killer da História.
Jack cometeu cinco crimes hediondos. Assassinatos ritualísticos que, num período de dez semanas, produziu um clima de rumores e terror no outono de 1888 em Londres. Nunca foi capturado. Policiais, jornalistas, estudiosos, adivinhos e místicos reviram fatos, livros, depoimentos, suposições e mesmo a história, mas não encontram a solução definitiva para os crimes que ele cometeu. Nem sabem se “ele” é a palavra certa. Poderia perfeitamente ser “eles”.
Pode-se dizer, no entanto, que Jack atingiu parte de sua meta. Sua influência será eternamente sentida na literatura, no cinema e, depois de From Hell, de Alan Moore, nas Graphic Novels (GN). O nome de Moore (Watchmen e V for Vendetta) está associado definitivamente a best sellers. Publicado em 16 edições mensais, forma um livro de quase 600 páginas. Já é uma obra de referência para aficionados de simbolismo. A versão integral tem 108 páginas de apêndices que explicam em detalhes, às vezes quadro a quadro, as fontes de pesquisa de Moore.
Seus fãs, surdos a qualquer crítica negativa, compram quaisquer histórias que ele assine como roteirista. Sempre profundos, intrincados, pesados, difíceis até, seus roteiros adotam uma forma que os aproximam muito da linguagem cinematográfica. Usa, mas não abusa, das mudanças de pontos de vista do leitor, planos em detalhe e até técnicas de zoom.
O filme lançado em 2001, atingiu um sucesso relativo apesar de contar com atores como Johnny Depp, Heather Graham e ser dirigido por Allen e Albert Hughes (Dead Presidents, Menace II Society). Os produtores, Don Murphy e Jane Hamsher, trazem no seu currículo Natural Born Killers. O diretor de fotografia é Peter Deming, (Austin Powers: International Man of Mystery), que chamou a atenção dos irmãos Hughes com sua melancólica e escura fotografia em Lost Highway. O compositor Trevor Jones traz na bagagem sucessos como Notting Hill, O Último dos Moicanos e Coração Satânico.
Apesar de todos os “jogadores” virem da primeira divisão, formaram uma combinação volátil. Com um tema como este é fácil cair na violência gratuita, nas cenas escuras cobertas com neblina e na abundância de sangue. Há quem diga que From Hell é só mais um filme sobre assassinatos. Moore, questionado sobre a adaptação, meio escondido atrás de sua cabeleira despenteada e de uma barba que mais parece uma daquelas touceiras que se encontram perto de banhados, disse: “Eu escrevi o livro. Eles compraram os direitos para adaptar para o cinema. Não posso, nem quero, dar palpite. Não me interessa o que eles estão fazendo”.
A Londres de Jack
As principais locações do filme incluíram diversos castelos históricos próximos à cidade de Praga e uma reconstrução de Whitechapel, distrito de Londres onde ocorreram os crimes. Projetado por Martin Childs (ganhador do Oscar por Shakespeare Apaixonado), o set de Whitechapel é uma fiel reprodução dos prédios e estreitos becos de paralelepípedo da região em que viviam as cinco prostitutas que tiveram o azar de cruzar o caminho de Jack.
Apesar do nome angelical que traduzido seria “Capela Branca”, a região era uma favela suja, mal cheirosa, antro de doenças e usada como um refúgio de criminosos. Pouco policiada, era o centro do consumo de drogas, prostituição, alcoolismo e violência das ruas londrinas. From Hell concentra principalmente na corrupção que dominava a polícia e as autoridades da época. O título, em português “Do Inferno”, refere-se ao endereço do remetente de uma carta que teria sido enviada por Jack para a polícia.
Riquíssimo em detalhes sobre o dia a dia naquele gueto, o roteiro de Moore não deixa de lado o drama psicológico de Jack, sua infância, seu comportamento e a histeria que gerou na cidade. Vemos ali pessoas que estão no inferno, tentando sobreviver em circunstâncias extremas. No meio desta “tempestade” de injustiças sociais e violência, estão cinco indigentes que tentam viver da prostituição. Partilham uma amizade que pode ser qualificada de “no mínimo desesperada” e se tornam ainda mais unidas à medida que são ameaçadas pelo assassino.
Mary Kelly, Kate Eddowes, Liz Stride, Dark Annie Chapman e Polly vivem em uma sociedade que, ao mesmo tempo em que as desonra, se alimenta delas. São usadas e abusadas pelos homens. São mastigadas e cuspidas pelo sistema. Ganhando com seus corpos o mínimo para sobreviver, não possuem nada de valor e são ameaçadas por um monstro que deseja privá-las da única coisa que possuem: a vida.
À medida que os crimes de Whitechapel vão acontecendo, o Inspetor Fred Abberline é impedido pelos seus superiores de continuar investigando. As autoridades estão mais interessadas em varrer os crimes e os corpos para baixo do tapete oficial. Fica claro que os crimes estão sendo cometidos por alguém que está mais para cirurgião do que para carniceiro e que a matança é feita de forma bizarra, envolvendo um elaborado ritual. O inspetor analisa as armas dos crimes e a maneira pela qual os assassinatos estão sendo conduzidos e chega a uma conclusão que pode conduzir as investigações em direção a uma constatação terrível.
Independente de que instituição ou pessoa teve participação nos assassinatos, isto não diminui a força da acusação que é feita por Alan Moore no seu roteiro e ilustrada de forma impecável por Eddie Campbell. É deixado muito claro o envolvimento de diversas pessoas importantes e as ramificações implicam inclusive a Rainha da Inglaterra. Todos, autoridades, nobreza e realeza, por ação ou omissão, tiveram culpa. O fato da polícia ter se recusado a considerar sequer a possibilidade de que o suspeito fosse um membro das classes altas, fala muito a respeito da era Vitoriana.
Serial Killer e tablóides
O caso de Jack, além de, historicamente, ser o precursor de uma nova era no jornalismo, praticamente criou o culto à celebridade. Promoveu ainda uma evolução inédita nas ciências forenses. Naquela época, se a polícia não pegasse alguém em flagrante não poderia condenar ninguém. Não existia qualquer procedimento padrão para a coleta de impressões digitais ou amostras de sangue. Este caso levou à criação dos métodos científicos e das ferramentas para auxiliar as investigações. Um caso clássico do “mal” gerando o “bem”.
É lendária a ousadia de Jack, que cometia crimes hediondos em lugares públicos, desaparecendo sem ser percebido. Esta mescla de violência sem face, sem origem, sem destino e sem nome, intriga o público há mais de um século. Pode ser que tudo não passe de incompetência da polícia da época, que teria encontrado um oponente inteligente, criativo, culto e louco o suficiente para desafiá-los.
From Hell revolucionou. Pelos recursos cinematográficos adotados pelo roteiro, pela crueza da abordagem do tema e pela denúncia social que promove, estabeleceu uma nova referência em termos de conteúdo para quadrinhos e Graphic Novels. Qualquer leitor desta obra vai exigir mais qualidade em suas próximas leituras de GN. Segundo Moore, existe em relação a Jack um segredo bem guardado. Um segredo que, se revelado, teria conseqüências catastróficas para um país como a Inglaterra e para qualquer instituição vinculada ao problema. Se isto é verdade, esta informação, de alguma forma, algum dia, virá à tona. Talvez “From Hell” seja a forma e o dia tenha chegado.