Asilo Arkahm, anos depois, ainda é inovador.
Meu primeiro sobressalto com histórias em quadrinhos aconteceu no início dos anos 70. Sofrendo os efeitos da minha gripe de entrada de inverno, minha mãe me levou no pediatra. Para suportar as agruras do exame, a promessa: “A gente compra uma revista do Capitão América na volta, tá bom?” Ela cumpriu a promessa. E mudou minha infância.
Em casa, debaixo das cobertas, a salvo da pneumonia, tudo parecia bem. Relaxei, baixei a guarda e comecei a ler a revista. O escudo do Capitão não foi suficiente para me proteger das convulsões sociais pelas quais o mundo passava. A guerra do Vietnam, a corrida armamentista e o problema racial nos Estados Unidos, em debate no mundo inteiro, chegavam com algum atraso ao Brasil e invadiam a minha cama. Na revista, um estudante era baleado e morto em uma passeata pela paz na universidade de Berkley.
Política, pacifismo, militarismo, conflitos psicológicos. Nada de super. Nem heróis, nem vilões, nem vitórias. Só a realidade que passava a tomar conta das histórias em quadrinhos. A queda nas vendas em virtude do amadurecimento dos leitores levou os editores a trazer os personagens para fora das revistas. Decisões do governo quanto à política social, diplomacia ou interferências internacionais afetavam os roteiros. O mundo em que os heróis passaram a viver, é o nosso mundo. O Batmóvel podia ser multado e guinchado. Super-Homem tinha problemas conjugais e o Capitão América, meu repositório infantil de salvaguardas, tinha de pagar imposto de renda.
Vinte anos depois, saindo de uma estafante audiência em que minha atuação como advogado de uma grande empresa não foi nada “super”, a capa de uma revista em quadrinhos chamou minha atenção em uma banca de revistas. Era cara, lembro bem. Mas o pagamento trouxe a remissão daquela minha tarde com febre, anos antes. Uma revolução acontecia pelas mãos da editora DC Comics (republicada no Brasil pela Abril), pelo roteiro de Grant Morrison e pelas maravilhosas ilustrações de Dave McKean. Batman e o Coringa vieram me socorrer.
Asilo Arkham
Batman é louco. Todo mundo sabe. Caso contrário não estaria tentando combater o crime, andando pelos telhados da cidade, à noite, fantasiado de morcego. Na infância, Bruce Waine, sua personalidade diurna, presenciou o assassinato dos pais. Traumatizado, usa os aparentemente inesgotáveis recursos de sua herança para montar um refúgio em uma caverna em baixo de sua mansão. Cria equipamentos para auxiliar sua missão de vingador e, para se movimentar de forma “discreta” e prender os bandidos, constrói um veículo que está menos para camburão e mais para carro alegórico de Clóvis Bornay.
Bruce-Batman não está sozinho neste louco mundão de Deus. Em uma citação de Alice no País das Maravilhas, reproduzida nas primeiras páginas de Asilo Arkham, a sentença é dada: “Aqui somos todos loucos. Eu sou louco. Você é louca.”
Todos os grandes vilões derrotados por Batman foram considerados insanos e presos no mesmo lugar, o Asilo Arkham. Resgatando informações do “universo quiróptero” a instituição foi fundada em 1921 por Amadeus Arkham para que pessoas com problemas mentais desfrutassem de um local seguro onde repousar e se recuperar. Amadeus, médico proeminente, reformou completamente a gigantesca casa onde morava com a família nos arredores de Gotham City. Seu primeiro paciente agradeceu a generosidade de Amadeus assassinando a esposa e a filha do médico que, tempos depois acabou sendo internado no próprio asilo.
Mais tarde, quando a fama do asilo como depósito de criminosos estava estabelecida, Jeremiah Arkham, sobrinho de Amadeus, reestruturou o edifício que recebeu a forma de um labirinto. O conceito da nova construção: trabalhar para “encontrar a saída”.
O Roteiro
A trama em 10 palavras: prisioneiros se revoltam; fazem reféns; Batman tenta controlar a situação. O personagem principal não é Batman, é o Asilo. Em seguida, o Coringa. O morcegão vem em um distante terceiro lugar. Só por isso, o livro já inova. Quando o público percebeu que o Coringa passava a maior parte do tempo humilhando e ridicularizando o “Cavaleiro das Trevas” (até eu tiraria um sarro dele por causa deste “sobrenome”), elevou o status do livro ao de obra controversa. E, ao espalharem as notícias sobre as insinuações homossexuais feitas pelo Coringa em relação à dupla Batman/Robin, Asilo Arkham chegou a ser banido de certos círculos de fãs. Assim que Batman entra no Asilo, percebe um pó branco nas suas luvas. O Coringa diz: “Isto é sal. Por que não salpica um pouco em mim, querido? Não sou gostoso o bastante para ser comido?”
O livro não é uma história em quadrinhos tradicional. Está mais para fãs de David Lynch (Veludo Azul, Coração Selvagem) do que para Disney ou DC Comics. Propõe uma atmosfera de solidão, de rua vazia, em madrugada chuvosa de dia de semana. Passa longe de uma tarde ensolarada de domingo com a família. Como toda obra que inova, Asilo Arkham recebeu ácidas críticas e foi acusada de exibir um roteiro vazio. Desculpa para ostentar a arte de McKean. Não concordo. Os inimigos de Batman, agora reais, nossos inimigos, não são mais caricaturas que, ao levar um soco, produzem um “POW” animadinho. São pessoas insanas, trancadas em um asilo.
Batman, ele sim, é uma desculpa para ser nossos olhos no Asilo, do lado de dentro da loucura, nosso salvo (mas nem tanto) conduto, para caminhar por aqueles corredores perigosos, escuros e fétidos. Esta é, de longe, a mais violenta das histórias de Batman. Para melhorar o conjunto, o roteiro inclui dezenas de referências à psicologia, mitologia, misticismo, religiões e simbolismo. Algumas referências são evidentes, outras para lá de herméticas, se perdem pelos corredores.
Batman, o tempo inteiro, é só uma sombra vagando pelo asilo atrás de respostas e significados para suas ações. Caímos de novo na analogia à obra de Lewis Carrol, “Alice no País das Maravilhas”. Lá (ou aqui), no escuro, onde ninguém ouve gritos e gemidos, o Coelho Branco e o Chapeleiro Maluco copulam como (claro) loucos. Se você entrar na sala (cela) errada e surpreendê-los, eles vão caçá-lo pelos corredores, escadarias e salões fedorentos do Asilo e vão arrancar sua cabeça.
O Escritor
Em entrevistas, Grant Morrison, o roteirista, diz coisas como: (Mondo-1994) “Minha vida é calma, inofensiva, quase como a de um monge, mas lá no fundo o que eu quero mesmo é destruir o universo” e (Comics Journal – 1995) “Passei anos inteiros da minha vida completamente chapado e fazendo uma série de outras coisas que normalmente não se deve fazer.”
Inglês, mora em Glasgow. Foi o primeiro roteirista de Graphic Novels do mundo a ser considerado pela revista Entertainment Weekly uma das 100 pessoas mais criativas a ser publicada nos Estados Unidos. Escreve romances e tem diversos roteiros para cinema e tv (projetos desenvolvidos para Ridley Scott e para a BBC). Traz na bagagem duas peças de teatro premiadas (“Red King Rising” e “Depravity”). Morrison publica artigos e contos em vários jornais ingleses, manifestando-se sempre de forma contundente. Escreveu há pouco tempo em uma de suas colunas: “A melhor coisa da internet é o seu efeito equalizador. On-line todas as opiniões são inúteis”. E delira: “Reuni evidências suficientes para concluir que o universo é uma larva fractal criada em um meio fluído e penta-dimensional de informações. Só tenho medo de aranhas grandes e de mariposas”. Entenda como quiser.
Asilo Arkham, sua obra mais famosa até agora, vendeu mais de 200.000 cópias nos três primeiros meses de lançamento nos Estados Unidos e ganhou praticamente todos os prêmios internacionais. Suas Graphic Novels “St. Swithins´s Day” (um rapaz que tenta assassinar Margaret Thatcher) e “The Invisibles” (longa série de seis anos sobre um grupo terrorista) levantou debates no governo Inglês. Seus créditos incluem ainda “The New Adventures of Hitler” e “Kill your Boyfriend”, entre mais de 20 séries, com um total de mais de 100 volumes.
O Ilustrador
Asilo Arkham não atingiria o sucesso internacional não fossem as ilustrações de Dave McKean. Atualmente escrevendo seus próprios roteiros (já publicou “Cages” – 1998), sugeriu a retirada de Robin e da personalidade “humana” de Batman (Bruce Wayne) do roteiro original.
O artista, em retrospectiva, afirma que a parceria com Morrison, apesar de aclamada, ofereceu pouco conteúdo e que as ilustrações e a concepção artística desviam a atenção do leitor. “E daí que o Batman é um psicopata? Quem se importa?”
Suas obras estão pelo mundo inteiro: galerias de arte em Nova Iorque, capas de revistas e livros, encartes em CDs, cartazes, tudo o que possa aceitar arte radical. Inovou além da insanidade em Asilo Arkham. Com ele, as capas das GN deixaram de ser acessórios dos roteiros, amplificando a experiência além do gráfico, para o emocional.
Dificilmente McKean assina suas obras. Não é preciso. Seus fãs reconhecem seu estilo. Único, mescla técnicas de pintura com construção, sucata, fotografia, aquarela, grafite e depois junta (embaralha, confunde, mixa) tudo usando o Adobe Photoshop no seu computador.
Loucura X Vitória
Nenhuma vitória de super-herói é definitiva. Os arqui-inimigos sempre voltam, mesmo que em uniformes, máscaras, maquiagens ou com sotaques diferentes. Batman, chamado para resolver a crise no Asilo, tem o mesmo destino. Sofre alucinações, se esfaqueia, chama pela mãe, chora, se perde. Quando sai não está revigorado pela vitória, mas destruído pela loucura que domina o Asilo.
Mas onde é dentro e onde é fora? Não são definidas as fronteiras entre certo e errado, sanidade e loucura, branco e preto. Vivemos em uma região cinza. Diferenças sutis nos tons dos nossos comportamentos muitas vezes não são percebidas até que, irremediavelmente, estamos no escuro. Não faz diferença se entramos no Arkham, em uma biblioteca, universidade, redação de jornal ou escritório de advocacia. Levamos conosco a nossa vida e nossos tons de claro e escuro. Asilo Arkham é mais uma prova de que a insanidade é contagiosa. Loucura, se pega.